Por Eduardo Carli para A Casa de Vidro
“Não podes entrar duas vezes no mesmo rio.” Heráclito
A vida é um troço que talvez possua uma única constante: a mudança. A impermanência é um dado permanente da condição dos viventes que somos – ou melhor, que estamos sendo. Ainda que muitas vezes a maioria de nós seja incapaz de fazer as pazes com a transitoriedade, o que sabemos de mais certo sobre a vida é que ela acaba, é claro (que certeza mais inegável que a da morte?), e que seu ponto final chega após ela atravessar, dure o quanto durar, um fluxo incessável de fases transitórias.
Fadados à efemeridade, podemos tentar nos agarrar à rocha sólida do “caráter” (Wilhelm Reich chamará isto de encouraçamento, e conectará isto à “peste emocional” que é a neurose dos normais). Inconformados com o fato de que estamos neste mundo de passagem, podemos querer nos agarrar à crença duvidosa no eterno que as religiões nos prometem. Ou, por outro lado, caminho mais raro: podemos aceitar a correnteza e nela nos deixarmos arrastar, nadando neste rio de transformações em que também nos transformamos sem cessar.
Esta alternativa ético-existencial – ou tentar fixar-nos, como náufragos em sua bóias, agarrando-nos à pedra de uma identidade que tentamos acreditar sólida, ou aquiescer às forças da transformação que nos atravessam para sermos cúmplices da mudança cósmica – é central, julgo eu, para uma abordagem fecunda da ética, da estética, da política.
Assistir ao enigmático filme de Brett Morgen sobre Bowie leva a pensar que uma das chaves para a compreensão da genialidade no campo cultural consiste na aptidão do sujeito de acolher e abraçar as metamorfoses da existência. Ou melhor: o gênio que marca época na arte é com frequência aquele que expressa em sua obra, em sua vida, o “tudo flui” de que nos falava o filósofo Heráclito.
Se, na cultura brasileira, Raul Seixas nos forneceu aquela que é talvez a mais impecável expressão disto em “Metamorfose Ambulante”, na cultura anglo-saxã – que domina o Olimpo do pop em virtude do poderio de sua industrial cultural – não há ninguém que sirva mais e melhor como ícone do panta rei do que o “camaleão” Bowie.
Em seu livro magistral Carpe Diem, o pensador australiano Roman Krznaric nos comunica sua altamente pertinente leitura de Bowie: ele vê uma “abordagem à impermanência nas muitas vidas de David Bowie. Ao longo de toda a sua carreira ele foi conhecido pela capacidade de se reinventar, em especial por meio da criação de novos personagens públicos. Estes tiveram origens complexas, inclusive em seu estudo do teatro Kabuki e na influência de seu primeiro professor de dança, Lindsay Kemp.” (KRZNARIC: Saiba mais – https://acasadevidro.com/pequenas-mortes-muitas-vidas-a-sabedoria-budista-da-impermanencia-por-roman-krznaric/)
Assim como havia feito em Montage of Heck, dedicado a Kurt Cobain, o diretor de Moonage Daydream procura pôr diante de nossos sentidos um fluxo fílmico que não obedece a correntes cronológicas. Não esperem encontrar uma biografia informativa, cheia de fatos jornalísticos, sobre David Bowie nesta doidêra audiovisual alucinante. Aqui estamos diante do que eu chamaria, inspirado pelo Teatro Oficina e seu AVÁ, de um OAVNI – Objeto Audiovisual Não-Identificado.
Este caleidoscópio que voa, rompendo com as convenções da biopic e do documentário talking heads, sai da jaula de Cronos e embarca no filme-fluxo. Não é o tipo de filme que recomenda-se para consciências sóbrias ou caretas; os acólitos do proibicionismo, os opositores dos enteógenos, provavelmente encontrarão aqui apenas um amontoado sem pé-nem-cabeça de doideras. Mas quem estiver com as portas da percepção expandidas, lúcido diante do fluxo linguístico que aqui flui com montagem impressionantemente orquestrada, terá como recompensa não apenas um percepção ampliada de Bowie. Terá uma obra que oportuniza uma meditação profunda sobre nossa existência visceralmente temporalizada (não é possível ser fora do tempo assim como é inconcebível não existir no espaço).
Abraçando uma estética de filme-ensaio a ser visto e revisto por aqueles intrigados por seus sentidos recônditos, Morgen explora uma senda próxima àquela dos filmes dedicados a Patti Smith e Radiohead.
Nada pedagógico e muito imersivo, Moonage Daydream deseja contribuir para um incremento de nossa apreciação do fenômeno Bowie em seus aspectos existenciais, em suas escolhas a um só tempo ética e estéticas, sobretudo pintando-nos um artista que fez de seu próprio corpo um canvas. Adorei esta imagem, que emerge em uma entrevista que Bowie concede e na qual ele confirma que sim, fez de sua carne um canvas onde sobrepôs camadas e camadas de personas.
A importância deste filme está também em destacar o quanto Bowie transcende a música, apesar desta ser uma de suas linguagens prediletas. É necessário incluir todo o domínio da audiovisualidade, é preciso mergulhar nas imagens Bowianas, para de fato começar a decifrar este artista-esfinge que, além de cantor, compositor, músico, foi também ator, performer, videomaker, pintor etc.
“Moonage Daydream made a point to accentuate the fact that Bowie never stood still. Both physically and artistically, he never wanted to remain in the same place. He lived all over the world and explored all kinds of artistic mediums; while music remains what he was most famous for, he was also an avid painter, actor, sculptor and videographer.” THE POST – https://www.thepostathens.com/article/2022/09/film-review-moonage-daydream-keeps-the-spirit-of-bowie-alive
É preciso atentar nas fotos, videoclipes, performances, entrevistas filmadas, ou seja, enxergar o corpo de várias aparências de David Bowie, suas variadas aparições e personas, para compreender em sua concretude do que falamos quando afirmamos que este artista marca a história das práticas queer, do neo-dionisismo, da virada glam do rock, e por aí vai.
O filme começa com uma citação de Bowie que remete à filosofia de Nietzsche e ao “como viver?” depois da morte de Deus. Quando não mais se crê em Deus, o espaço esvaziado que se faz dentro do sujeito após a ejeção do divino clama pela criação de um preenchimento. Costumo pensar nas changes de Bowie – que inauguram uma de suas obras-primas, o ainda subestimado Hunky Dory, um dos melhores álbuns já gravados… – como a reação de um sujeito inquieto ao god-shaped hole que se fez em seu peito.
Este artista tentou atravessar a vida aderindo a várias máscaras, encarnou diversos personagens – dentre os quais Ziggy Stardust é apenas o mais famoso, mas longe de ser o único; tampouco foi duradouro, tendo sido persona descartada em um par de anos. Fica claro ao espectador de Moonage Daydream que Bowie escolheu este caminho de vida, esta sucessão de personagens, abraçados para depois serem descartados, para desafiar-se. Para colocar-se sempre fora da zona de conforto. Para estar sempre a caminho de realizar o ainda inédito e inaudito. Há um pouco do frenesi de originalidade aqui, um certo nojo por aqueles que apenas repetem fórmulas que no passado mostraram-se bem sucedidas.
Depois do mega-sucesso de Ziggy Stardust, Bowie poderia ter passado 4 décadas interpretando este personagem sobre os palcos, gravando álbuns que fossem sequências e contando os milhares de dólares no processo. Mas este nunca foi o caminho que ele quis – Bowie parecia cansar-se rapidamente de qualquer lógica do replay. É isto que explica o “descarte” de personagens, a busca por novos ares, o desejo por viajar e morar em outras latitudes e longitudes, o que levará David para longe da Inglaterra natal e dos EUA que adotou por um tempo. Inclusive levando-o naquela jornada a Berlim e às experimentações com Brian Eno que estão materializadas em obras-primas da música no século XX como Low.
O fascínio que Bowie exerceu, e que prossegue ativo após seu falecimento, reavivado em vários filmes e numa fortuna crítica crescente, parece-me umbilicalmente conectado com esta rara capacidade de metamorfose. Muito já se falou sobre o tema, mas quase sempre apenas ouvimos repetições infindas sobre o apelido Camaleão. Bowie de fato é uma entidade policromática, e por isto altamente ambígua, um sujeito humano que tentou em seu próprio corpo a fusão (e não a disjunção) de masculino e feminino, yin e yang, criação e destruição; abraçando a bissexualidade, recusando os papéis viris e preferindo apresentar-se de maneira queer, brincando de jogar com as figuras do alienígena, do estranho, Bowie bagunçou os códigos caretas. De maneira análoga ao que fizeram no Brasil Secos & Molhados, Os Mutantes e a trupe tropicalista.
A androginia – usar maquiagem pesada, usar vestidos (como na capa do disco The Man Who Sold The World) – contribui para a figuração queer de Bowie. Com frequência lembro-me da obra de Preciado ao ouvir Bowie – sobretudo os pensamentos audazes e inauditos avançados em Testo Junkie em que defende-se o direito do sujeito de fazer de si mesmo sua cobaia.
Preciado e Bowie estão unidos neste ímpeto de tornarem-se cobaias de experimentos realizados no campo das radicais transformações existenciais. Sem Bowie, T Rex, Queen, dentre outras bandas que encarnaram uma manifestação mais feminil, aveadada e queer da cultura rocker, teria sido muito mais difícil a emergência posterior de artistas transexuais, de vertentes queercore, de fenômenos do movimento Punk como o Against Me!, ou de manifestações de pansexualidade ou transexualização hoje encarnadas em Janelle Monae ou Liniker.
O fenômeno Bowie também nos leva a pensar, enquanto consumidores de música e críticos da produção musical, ou seja, em sentido amplo, enquanto sujeitos que escolhem, apreciam, avaliam, preferem, repudiam, amam e odeiam músicas e obras musicais, no peso que concedemos a estes dois fatos em luta: originalidade vs memorabilidade. O que quero dizer com isto ficará mais claro com um exemplo: há muitos artistas da história do rock que fizeram coisas memoráveis através da aplicação de uma fórmula bem-sucedida, sendo os casos mais notáveis o AC/DC, o Motörhead e os Ramones; estes grupos não pareciam ter muito interesse na originalidade, nunca mudaram muito seus rumos sônicos, tornaram-se previsíveis a cada novo álbum que vinha parecido com os anteriores etc. Em contraste, figuras como Bowie dedicam-se à tarefa de não se repetir, de buscar a originalidade, mesmo sob o risco de ser considerado incoerente ou mesmo esquizofrênico.
Para o meu paladar, um dos trechos que deixa na língua o melhor gosto é aquele em que Bowie cai em modo Marcel Proust, vai em busca do tempo perdido e relembra sua convivência impermanente com seu meio-irmão. Este ajudou David a ampliar seus horizontes mas também mostrou o perigo – este meio-irmão morreria cedo, caso grave de esquizofrenia – desta proliferação psíquica de personas, de influências, de “caos” multicor e ruidoso de influxos. O artista aqui confessa que temeu pelo enlouquescimento próprio após ter tido um convívio tão fascinante com alguém que de fato enlouqueceu. A referência a Nietzsche na epígrafe do filme frisa também este elemento Bowiano: ele sempre soube que estava sob o risco de um adoecimento psíquico, e sua arte sempre foi uma espécie de esquiva que deu driblando este monstro. Arte-terapia até o fim.
O que me pergunto é que a própria obsessão pela originalidade, o desejo de sempre devir-outro, não pode ele mesmo tornar-se uma espécie de monomania narcísica. Isto que tanto nos fascinaria em Bowie seria, portanto, as mil faces de Narciso, fazendo de seu corpo um canvas para o caleidoscópio desfile de suas criações. Isto é sábio ou é louco? A resposta é impossível, mas talvez perpasse por uma combinação, e não por uma disjunção: Bowie, como Nietzsche, como Raul, é síntese de sábio e louco.
Em alguns parágrafos magistrais de Carpe Diem, livro que adoro, o bowiano filósofo australiano pontua:
“Após começar como roqueiro acústico hétero nos anos 1960, ele explodiu no palco em 1972 com seu alter ego Ziggy Stardust, uma estrela do rock bissexual alienígena. Reinventou-se de novo com personas como Aladin Sane e Thin White Duke, depois emergiu nos anos 1980 como ídolo pop oxigenado que fez álbuns como Let’s Dance. Ao mesmo tempo, Bowie se transformou em ator, assumindo papéis importantes em filmes como O Homem Que Caiu na Terra e produções teatrais como O Homem Elefante.
A natureza enigmática de suas metamorfoses foi comentada pelo próprio Bowie em 1976, numa declaração classicamente elíptica: “Bowie nunca foi destinado a existir. Ele é como uma caixa de Lego. Estou convencido de que não gostaria dele, porque é oco e indisciplinado demais. Não há um David Bowie definitivo.” Quer sejam feitas ou não a partir de uma caixa de Lego, as muitas vidas públicas de Bowie podem ser vistas como uma série de pequenas mortes, em que novos Bowies nasciam regularmente à medida que velhos Bowies morriam. Como artista, ele estava sempre num estado de transitoriedade, personificando a ideia de impermanência – tema refletido em sua canção “Changes” (de Hunky Dory).
No fim ele abandonou de fato o fluxo de impermanência morrendo de câncer no fígado, mas não antes de aproveitar o dia e fazer um último álbum, Blackstar, em que chega a cantar sobre sua própria morte. Muitas pessoas tiveram suas vidas mudadas por David Bowie, mas acho que um de seus legados é oferecer inspiração àqueles que podem sentir muitos eus se agitando dentro de seu ser, à espera de irromper – do adolescente que sonha em assumir em público sua sexualidade ao contador frustrado que quer viver uma vida mais criativa e aventureira. A filosofia de pequenas mortes pode nos galvanizar para aproveitar o momento, deixar um velho papel para trás e nos inventarmos de novo.”
Assistir Moonage Daydream consolida esta percepção de que o fenômeno Bowie na cultura tem tudo a ver com uma filosofia subjacente – alinhada ao carpe diem num sentido bastante lúdico e dramático, pois este sujeito humano extra-ordinário pôde expressar uma vida cheia de pequenas mortes, de máscaras rasgadas largadas pelo chão de sua travessia errática. Sábio-louco que apostou tudo na possibilidade da reinvenção, amante das reviravoltas, metamorfose ambulante que adequa-se à perfeição àquela Raul Seixística descrição, Bowie, depois de morto, segue sua metamorfose, estranhamente presente, espectral mas cheio de cor, apodrecendo debaixo da terra mas explodindo entre nós em imagens-e-som num telão com surround sound.
Mais do que nos entreter, mais do que nos vender produtos artístico no grande supermercado da indústria cultural, Bowie foi um cometa que passou para nos intrigar, para nos deixar perplexos, para nos instigar a sermos outros, a não nos fixarmos na jaula estreita de um eu imutável. Contras as prisões das identidades estáticas, ele fez-se o profeta secular do ethos camaleônico. Encantou multidões nos palcos, no cinema, até encenar a própria morte em Black Star, legando-nos algo infindável, incessável, na medida em que permanece esfinge e foge de nossa plena compreensão.
Ao menos pude compreender isto em meio ao fluxo policromo deste caos embelezado em que Moonage Daydream nos mergulha: a vida é metamorfose (fato ontológico) e o corpo próprio pode ser canvas (escolha ética, em aberto: é pegar ou largar – ou melhor, é pintar, compor, filmar, ou deixar o corpo emurchecer no status de xerox).
Publicado em: 26/11/22
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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